Não existem línguas mais "simples" ou mais "complexas"
Letras ao léu
Falam-se cerca de 6 000 idiomas no mundo. Um novo livro mostra essa fascinante diversidade e revela que muitos estão próximos da extinção.
por Jerônimo Teixeira / Adriano
Você já deve estar acostumado a alertas sobre as crescentes ameaças à biodiversidade do planeta. Os ambientalistas costumam traduzir seus números em bases temporais: a cada dia, tantos hectares de floresta são devastados na Amazônia; a cada hora, tantas espécies animais são extintas. Esse expediente é um modo bastante incisivo de traduzir a urgência do problema. Descobrimos que a devastação não é um processo de longo curso, que a catástrofe está acontecendo agora mesmo, enquanto tomamos café ou vemos televisão. Pois bem, eis um novo e alarmante dado: a cada duas semanas, uma língua desaparece da Terra.
[...] A noção que temos do português é a de algo firmemente estabelecido pela palavra impressa – seja nesta revista ou em uma página clássica de Machado de Assis – e defendido pelas instituições escolares onde ainda aprendemos a conjugar a segunda pessoa do plural. A segunda língua que aprendemos na escola ou em cursinhos (geralmente inglês) costuma ser tão ou mais estável que o português.
Que uma língua possa estar morrendo agora, nesse exato instante, parece mais difícil de conceber do que a extinção de uma espécie animal. Os números são claros: existem hoje cerca de 6000 línguas em todo o mundo. A estimativa é de que 90% delas estarão extintas em 2100. Ou seja, 5500 línguas vão morrer neste século.
Esses números foram retirados de The Power of Babel – A Natural History of Language (O Poder de Babel – Uma História Natural da Linguagem, sem tradução no Brasil), do lingüista norte-americano John McWhorter, da Universidade de Berkeley. É um livro interessantíssimo e em certo sentido inovador. Em algumas áreas científicas, já existe uma tradição firme e lucrativa de obras de divulgação – pense em Stephen Jay Gould, na biologia, ou em Stephen Hawkins, na física. A lingüística ainda não tem todo esse ibope, mas seu potencial está bem representado em The Power of Babel. McWhorter mostra a fascinante riqueza alcançada pela linguagem humana.
Em vista desse dinamismo, os números tornam-se confusos, indecisos. Acima foi afirmado que existem cerca de 6000 línguas no mundo hoje. Bom, não estamos contando os dialetos, que no mínimo arredondariam o número para 10000. Na verdade, do ponto de vista técnico, não existem critérios lingüísticos para diferenciar língua e dialeto. Tomemos o alemão como exemplo. A língua que você pode aprender em cursos no Brasil é o chamado “Alto Alemão” (Hochdeutsch), que foi fixado no século XVI na famosa tradução da Bíblia por Martinho Lutero. O Hochdeutsch aparece em livros e jornais, mas, nas ruas, é quase uma abstração. Cada região da Alemanha tem sua variedade lingüística. O alemão que se fala na Suábia não é o mesmo que se encontra na Baviera. As diferenças entre cada um desses dialetos são muitas vezes maiores do que aquelas que encontramos entre o espanhol e o português.
E no entanto ninguém pensaria em sugerir que o português é um dialeto do espanhol. “Já foi dito que um dialeto torna-se uma língua quando tem um exército e uma marinha para sustentá-lo. É tudo uma questão de poder político”, explica o lingüista inglês David Crystal, autor de The Death of Languages (A Morte das Línguas, sem tradução no Brasil). Ele cita um exemplo: “Em 1990, o servo-croata era usado na Sérvia, na Bósnia e na Croácia, em diferentes dialetos. Dez anos depois, com a independência, temos três línguas independentes lá”.
A distinção entre idiomas é ainda mais complicada em linhas históricas amplas. O latim deu origem às línguas românicas, mas as pessoas não acordaram um dia e descobriram que estavam falando uma língua nova chamada francês. O processo foi lento e acidentado, com muitos estágios intermediários em que o latim vulgar já não era mais a língua de Cícero e ainda não era o idioma de Montaigne. The Power of Babel explica em linhas gerais alguns processos básicos através dos quais uma língua se modifica ao longo do tempo até o ponto em que já não seria inteligível para interlocutores do passado – isto é, até tornar-se uma nova língua. Um dos mais simples é a erosão fonética: sílabas não-tônicas no meio de uma palavra correm o risco de desaparecer na fala cotidiana. É assim que o latim femina foi dar no francês femme. Mulher, em português, vem de outra palavra, mulier, cuja acepção original era a de “mulher casada”.
É um exemplo de outro processo: a mudança semântica, no caso tornando mais amplo um sentido originalmente restrito (de mulher casada para mulher em geral). Ao longo do tempo, também acontecem fusões, em que uma palavra inteira é “comida” por outra, a ponto de se tornar apenas uma declinação (isto é, uma terminação indicando número, pessoa ou gênero). Cantare habeo, no latim clássico, queria dizer “tenho de cantar”. A mesma estrutura tornou-se o modo de expressar o tempo futuro no latim vulgar. Foi assim que as línguas românicas adquiriram suas conjugações. O “ei” no final do português “cantarei” e o “ò” do italiano “canterò” são resquícios do habeo engolido pela nova forma verbal.
Nessas mudanças, há muito de acidental e arbitrário. É por isso que não existem línguas lógicas. Todas carregam uma quantidade enorme e – do ponto de vista estrito da comunicação – desnecessária de tralha gramática. Para os falantes nativos, certas noções estão tão arraigadas que é difícil perceber como são supérfluas. A diferença entre ser e estar parece óbvia e obrigatória para todos nós, mas em inglês e alemão há um só verbo (to be e seinen, respectivamente) englobando as duas noções. Inglês, alemão, francês, português têm artigos definidos e indefinidos, que não existem em russo (e não existiam no latim). A ordem “sujeito-verbo-objeto”, que nos parece tão evidente e lógica, tampouco é comum a todas as línguas. Em alemão e em japonês, o verbo vai no fim da frase.
Nenhum desses traços particulares é problema para o falante nativo. O estrangeiro é quem sofre para aprender uma nova língua. Você talvez esteja cuspindo no professor de inglês para aprender a pronúncia do “ th” em think, ou está enrolado nas conjugações do francês, ou desistiu do alemão por causa das declinações. Isso ainda não é nada. Em cantonês (uma das línguas da China) e vietnamita, todas as palavras são monossilábicas, e o falante emprega diferentes tons para diferenciar uma palavra da outra. A sílaba yau, em cantonês, pode significar – entre outras coisas – óleo, magro ou amigo, dependendo do tom empregado. Isso exige uma sensibilidade auditiva que os falantes de línguas eslavas, germânicas ou românicas não desenvolvem. A narração monocórdia dos locutores da Voz do Brasil transformaria o cantonês em uma sopa de sons indiscerníveis.
O tom não é o único recurso fonético que não empregamos. Xosa, o idioma de Nelson Mandela na África do Sul, emprega estalos como um elemento lingüístico.
Este é o momento de derrubar um possível preconceito: o de que as línguas dos povos primitivos seriam mais simples. A gramática do cree, um dos inúmeros idiomas nativos norte-americanos, era tão complexa que as crianças só adquiriam proficiência completa lá pelos 10 anos de idade. [...]
TEIXEIRA, Jerônimo. Letras ao leu. Superintessante, São Paulo: Abril, out 2002. (fragmento)
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