quarta-feira, 24 de julho de 2013

Exercícios

A volta do caderno rabugento

            Não sei se vocês se lembram de quando lhes falei, acho que no ano passado, num caderninho rabugento que eu mantenho. Aliás, é um caderninho para anotações diversas, mas as únicas que consigo entender algum tempo depois são as rabugentas, pois as outras se convertem em hieróglifos indecifráveis (...), assim que fecho o caderno. Claro, é o reacionarismo próprio da idade, pois, afinal, as línguas são vivas e, se não mudassem, ainda estaríamos falando latim. Mas, por outro lado, se alguém não resistir, a confusão acaba por instalar-se e, tenho certeza, a língua se empobrece, perde recursos expressivos, torna- se cada vez menos precisa.
            Quer dizer, isso acho eu, que não sou filólogo nem nada e vivo estudando nas gramáticas, para não passar vexame. Não se trata de impor a norma culta a qualquer custo, até porque, na minha opinião, está correto o enunciado que, observadas as circunstâncias do discurso, comunica com eficácia. Não é necessário seguir receituários abstrusos sobre colocação de pronomes e fazer ginásticas verbais para empregar regras semicabalísticas, que só têm como efeito emperrar o discurso. Mas há regras que nem precisam ser formuladas ou lembradas, porque são parte das exigências de clareza e precisão - e essas deviam ser observadas. Não anoto, nem tenho qualificações para isto, com a finalidade de apontar o "erro de português", mas a má ou inadequada linguagem.
            E devo confessar que fico com medo de que certas práticas deixem de ser modismo e virem novas regras, bem ao gosto dos decorebas. É o que acontece com o, com perdão da má palavra, anacolutismo que grassa entre os falantes brasileiros do português. Vejam bem, nada contra o anacoluto, que tem nome de origem grega e tudo, e pode ser uma figura de sintaxe de uso legítimo. O anacoluto ocorre, se não me trai mais uma vez a vil memória, quando um elemento da oração fica meio pendurado, sem função sintática. Há um anacoluto, por exemplo, na frase "A democracia, ela é a nossa opção". Para que é esse "ela" aí?
            Está certo que, para dar ênfase ou ritmo à fala, isso seja feito uma vez ou outra, mas como prática universal é meio enervante. De alguns anos para cá, só se fala assim, basta assistir aos noticiários e programas de entrevistas. Quase nenhum entrevistado consegue enunciar uma frase direta, na terceira pessoa - sujeito, predicado, objeto - sem dobrar esse sujeito anacoluticamente (perdão outra vez). Só se diz "o policiamento, ele tem como objetivo", "a prevenção da dengue, ela deve começar", "a criança, ela não pode" e assim por diante. O escritor, ele teme seriamente que daqui a pouco isso, ele vire regra. (...)
            Finalmente, para não perder o costume, faço mais um réquiem para o finado "cujo". Tenho a certeza de que, entre os muito jovens, a palavra é desconhecida e não deverá ter mais uso, dentro de talvez uma década. A gente até se acostuma a ouvir falar em espécies em extinção, mas, não sei por que, palavras em extinção me comovem mais, vai ver que é porque vivo delas. E não é consolo imaginar que o cujo e eu vamos nos defuntabilizar juntos.

(João Ubaldo Ribeiro, O Estado de São Paulo, 18/07/2010)


1. (Insper 2011)  No processo de formação das palavras, os sufixos desempenham importante papel na produção dos efeitos de sentido. Identifique, dentre as palavras extraídas do texto, aquela em que o sufixo não tem sentido pejorativo.
a) reacionarismo   
b) modismo   
c) decorebas   
d) anacolutismo   

e) defuntabilizar   


Resposta da questão 1: [E]

Em “defuntabilizar”, o sufixo não tem sentido depreciativo. Trata-se de um recurso linguístico gerador de um neologismo, verbo derivado a partir da adjunção do sufixo –izar à base adjetiva defunto e que exprime “ação de tornar-se” (o cujo e eu vamos nos tornar defuntos juntos).  

TEXTO PARA A PRÓXIMA QUESTÃO:
Texto I

A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, 1deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. 4Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. 5Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. 6O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
7São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, 2a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – 3ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. 8Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

SABINO, Fernando. A Companheira de Viagem. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1965.

Texto II

O sorriso da comissária

Eu viajava no meu habitual voo Rio de Janeiro-Salvador. Ir à Bahia me renova e me inaugura todas as vezes, mesmo que a vez seja curta e parca. Às vezes, algo estranho se anuncia e me revela recantos meus desconhecidos no meu labirinto. De repente, me surpreende e me assalta a decifração de algum enigma em que eu me guardava debaixo das muitas sete chaves magras e sedentas. Naquele voo, a um certo instante, senti que se prenunciava um desvelamento, com tudo que tinha de ameaçador. Medo? Eu me preparei para o inevitável.
A comissária ia e vinha, desfolhada em sorrisos para nós, passageiros desprevenidos. Eu disse que ela ia e vinha em sorrisos, mas não eram muitos, era um único sorriso mesmo, que também ia e vinha, 5à medida que ela se voltava para um e para outro passageiro, está tudo bem? precisa de alguma coisa? se precisar, é só chamar, estou às ordens, e você? não faça cerimônia, estou aqui para servir, ah, como aquele excesso me incomodava, ela se demasiava. Orgulho de se sentir indispensável ou mera carência de afeto, a comissária começava a se expor diante de todos. 11Ninguém percebia que, ocultamente, algo se mostrava, perturbando a neutralidade confortável da aeronave.
Iniciado o serviço do almoço, a cada passageiro ela estendia o mesmo sorriso carnudo que lhe saía da vasta boca pintada de batom muito e demais vermelho. Boca sempre aberta, mesmo quando fechada. Boca que crescia e engordava, cada vez que ela se inclinava, perto da altura de cada boca sentada em cada poltrona. Por favor [boca gentil]. Aceita? [mais boca, gentil demais]. Bom apetite [simultaneamente, gentil mais e boca mais].
9As bocas comiam, todas sem presságios. 1De prontidão sob o batom vermelhento, a boca da comissária se justificava e se ajustava ao tamanho dos dentes. Todos os dentes, invisíveis não havia, visíveis numa coreografia feroz, de ritmo igual ao sorriso invicto, desde a entrada na aeronave, sim, desde o início dos tempos. 6Aquela mulher, fora de seu voo, teria alguém para quem sorrir? Saberia sobreviver sem a abundância do sorriso gordo, atropelado de dentes copiosos? Solidão solitária, solamente só e solo, sola.
Em que boca de homem caberia tal aquela boca? Difícil é amor com sorriso tão volumoso e sem canais para emergir do fundo. 7Antes de pegar a bandeja cada seguinte, para cada seguinte senhor passageiro, naquela minimíssima fração de segundo, ela rangia todos os dentes, todos cada dente. Rápida, mais rangia. Ódio ou medo, abandono ou traição, não, ela não podia ser esposa nem namorada nem a outra de nenhum marido frustrado. 10Depois de rangido todo o ódio, 2o sorriso vermelhudo se apossava da aeronave, dos passageiros e dos tripulantes.
Diante da bandeja, não, obrigada, eu não quero almoçar, encolhida-me na poltrona, o rosto colado na janelinha coberta de nuvens. Não tolerava assistir, ante meu olhar espremido, ao desvendamento daquele desarvorado enigma. 8Olhei assustada os outros passageiros. Todos comiam nas suas bocas desavisadas. Por que eu, somente eu, invadi aquele secreto recesso de tanto ressentimento? Ela prosseguia no implacável ritual. Entre um rápido ranger de dentes e as demoradas mesuras. 4Pura urgência de novamente 3se esconder atrás do sorriso gorduroso, vermelhoso, agarrado nos dentes escandalosos, enquanto se inclinava e se curvava e quase se ajoelhava.
Nenhuma vez eu sorri, contorcida nos meus próprios dentes que não rangiam e na minha boca transversal ao rosto. Vergonha de, sem prévio consentimento, haver penetrado num segredo de vida ou de morte? Culpa por não poder sequer pedir desculpas pela profanação? Talvez eu recuasse tanto atrás de minha boca intransponível, por mero horror à cumplicidade, após o horror da decifração.

CUNHA, Helena Parente. Vento, ventania, vendaval: contos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Salvador: Fundação João Fernandes da Cunha, 1998.

Texto III

Goleiro Bruno ri ao ser xingado de assassino
Ministério Público vai pedir internação do adolescente pelo sequestro de Eliza

Por Christina Nascimento

Contagem (Minas Gerais) – O Ministério Público (MP) de Minas Gerais vai requerer à Justiça que o menor 1J., de 17 anos, responda pelo crime de sequestro e que seja internado para aplicação de medida socioeducativa. O adolescente esteve ontem frente a frente com quatro acusados de participação no desaparecimento de Eliza Samudio: seu primo, o goleiro Bruno; Luiz Henrique Romão, o Macarrão; o ex-policial Marcos Aparecido dos Santos, o Bola; e Sérgio Rosa Sales, único que se dispôs a prestar esclarecimentos. Entre as testemunhas, o atleta era quem aparentava mais calma. Como tem feito desde que foi preso, ele não abaixou a cabeça ao aparecer em público. 2Desta vez, ele ainda sorriu ao ser xingado de assassino pelos curiosos que se concentravam em frente à Vara da Criança e Adolescente em Contagem, onde aconteceu a audiência.


Segundo o promotor da Infância e Juventude, Leonardo Barreto Moreira Alves, está comprovada a participação do menor no sequestro de Eliza, e já há elementos suficientes para pedir a internação do garoto, considerada a punição mais grave pelo Estatuto da Criança e Adolescente. Se a Justiça acatar a solicitação do Ministério Público, J. ficará detido por pelo menos seis meses e, no máximo, três anos.
“Por enquanto, não vou entrar no homicídio, e na ocultação de cadáver. Na versão do menor, ele não participou, mas o MP está analisando isso ainda. O fato de assistir pode consistir, sim, em responsabilidade no assassinato”, explicou Leonardo Barreto. Hoje termina o prazo de 24 horas que a promotoria tem para apresentar alegações finais do caso. Em seguida, será a vez de a defesa do menor fazer o mesmo procedimento. A previsão é de que sentença saia até quarta-feira.

O DIA Online. 23 de julho de 2010. 02h42min. Disponível em: http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2010/7/goleiro_bruno_ri_ao_ser_xingado_de_assassino_98196.html


2. (G1 - ccampos 2011)  Em textos literários, é comum que os autores se valham de recursos linguísticos diversos que conferem maior expressividade aos textos. É o caso do emprego de neologismos, nome dado à criação de vocábulos novos na língua. Observe os seguintes exemplos extraídos do texto II:

“De prontidão sob o batom vermelhento (...).” (ref.1)
“(...) o sorriso vermelhudo se apossava da aeronave (...).” (ref.2)
“(...) se esconder atrás do sorriso gorduroso, vermelhoso (...).” (ref.3)

Sobre os neologismos destacados acima, é lícito afirmar que:
a) são formados a partir do processo de composição, pela justaposição de radicais de origem estrangeira.   
b) são palavras tradicionalmente existentes na língua, porém agora empregadas sem indícios de significação.   
c) são constituídos a partir de um mesmo radical, ao qual se adicionam sufixos já disponíveis na língua portuguesa.   
d) são incorreções gramaticais, uma vez que a autora do texto não tem autonomia para inovar o léxico de sua língua. 



Resposta da questão 2:
 [C]

Os neologismos, muitas vezes, constroem-se com auxílio dos mecanismos usuais de produção lexical, como a derivação, geralmente por sufixação, como em “vermelhento”, “vermelhudo” e “vermelhoso”, constituídos pelo radical vermelh e os sufixos ento, udo e oso que acrescentam ação intensificadora e de abundância ao adjetivo vermelho.  
  

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